10 Crônicas
Mundo interior
(Martha Medeiros)
A casa da gente é uma metáfora da nossa vida, é a representação exata e fiel do nosso mundo interior. Li esta frase outro dia e achei perfeito. Poucas coisas traduzem tão bem nosso jeito de ser como nosso jeito de morar. Isso não se aplica, logicamente, aos inquilinos da rua, que têm como teto um viaduto, ainda que eu não duvide que até eles sejam capazes de ter seus códigos secretos de instalação. No entanto, estamos falando de quem pode ter um endereço digno, seja seu ou de aluguel. Pode ser um daqueles apartamentos amplos, com pé direito alto e preço mais alto ainda, ou um quarto-e-sala tão compacto quanto seu salário: na verdade, isso determina apenas seu poder aquisitivo, não revela seu mundo interior, que se manifesta por meio de outros valores. Da porta da rua pra dentro, pouco importa a quantidade de metros quadrados e, sim, a maneira como você os ocupa. Se é uma casa colorida ou monocromática. Se tem objetos obtidos com afeto ou se foi tudo escolhido por um decorador profissional. Se há fotos das pessoas que amamos espalhadas por porta-retratos ou se há paredes nuas. Tudo pode ser revelador: se deixamos a comida estragar na geladeira, se temos a mania de deixar as janelas sempre fechadas, se há muitas coisas por consertar. Isso também é estilo de vida. Luz direta ou indireta? Tudo combinadinho ou uma esquizofrenia saudável na junção das coisas? Tudo de grife ou tudo de brique? É um jogo lúdico tentar descobrir o quanto há de granito e o quanto há de madeira na nossa personalidade. Qual o grau de importância das plantas no nosso habitat, que nota daríamos para o quesito vista panorâmica? Quadros tortos nos enervam? Tapetes rotos nos comovem? Há casas em que tudo o que é aparente está em ordem, mas reina a confusão dentro dos armários. Há casas tão limpas, tão lindas, tão perfeitas que parecem cenários: faz falta um cheiro de comida e um som vindo lá do quarto. Há casas escuras. Há casas feias por fora e bonitas por dentro. Há casas pequenas onde cabem toda a família e os amigos, há casas com lareira que se mantêm frias. Há casas prontas para receber visitas e impróprias para receber a vida. Há casas com escadas, casas com desníveis, casas divertidamente irregulares. Pode parecer apenas o lugar onde a gente dorme, come e vê televisão, mas nossa casa é muito mais que isso. É a nossa caverna, o nosso castelo, o esconderijo secreto onde coabitamos com nossos defeitos e virtudes.
Crônica
Como o povo brasileiro é descuidado a respeito de alimentação! É
o que exclamo depois de ler as recomendações de um nutricionista americano, o
dr. Maynard. Diz este: “A apatia, ou indiferença,é uma das causas principais
das dietas inadequadas." Certo, certíssimo. Ainda ontem, vi toda uma
família nordestina estendida em uma calçada do centro da cidade, ali bem
pertinho do restaurante Vendôme, mas apática, sem a menor vontade de entrar e
comer bem. Ensina ainda o especialista: “Embora haja alimentos em quantidade
suficiente, as estatísticas continuam a demonstrar que muitas pessoas não
compreendem e não sabem selecionar os alimentos". É isso mesmo: quem der
uma volta na feira ou no supermercado vê que a maioria dos brasileiros compra,
por exemplo, arroz, que é um alimento pobre, deixando de lado uma série de alimentos
ricos. Quando o nosso povo irá tomar juízo? Doutrina ainda o nutricionista
americano: “Uma boa dieta pode ser obtida de elementos tirados de cada um dos
seguintes grupos de alimentos: o leite constitui o primeiro grupo, incluindo-se
nele o queijo e o sorvete". Embora modestamente, sempre pensei também
assim. No entanto, ali na praia do Pinto é evidente que as crianças estão
desnutridas, pálidas, magras, roídas de verminoses. Por quê? Porque seus pais
não sabem selecionar o leite e o queijo entre os principais alimentos. A
solução lógica seria dar-lhes sorvete, todas as crianças do mundo gostam de
sorvete. Engano: nem todas. Nas proximidades do Bob´s e do Morais há sempre
bandos de meninos favelados que ficam só olhando os adultos que descem dos
carros e devoram sorvetes enormes. Crianças apáticas, indiferentes. Citando
ainda o ilustre médico: “A carne constitui o segundo grupo, recomendando-se dois
ou mais pratos diários de bife, vitela, carneiro, galinha, peixe ou ovos".
Santo Maynard! Santos jornais brasileiros que divulgam as suas palavras
redentoras! E dizer que o nosso povo faz ouvidos de mercador a seus
ensinamentos, e continua a comer pouco, comer mal, às vezes até a não comer
nada. Não sou mentiroso e posso dizer que já vi inúmeras vezes, aqui no Rio,
gente que prefere vasculhar uma lata de lixo a entrar em um restaurante e pedir
um filé à Chateaubriand. O dr. Maynard decerto ficaria muito aborrecido se
visse um ser humano escolher tão mal seus alimentos. Mas nós sabemos que é por
causa dessas e outras que o Brasil não vai pra frente.
CAMPOS, Paulo Mendes. De um caderno cinzento. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015. p. 40-42.
Quem sabe Deus está ouvindo
Outro dia
eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na
mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a
castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta
do que fazia.
Na semana
seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma
coisa verde saía da terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei
cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule
com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e
vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a
planta, e caçoei dela:
– Você
vai criar um cajueiro aí?
Embaraçada,
ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.
– Mas é
melhor arrancar logo, não é?
Fiquei em
silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso – mas confesso que havia nele
um certo remorso. Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um
cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns centímetros,
sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a
castanha, mas isso a empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso.
Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria capaz; nem mesmo dar
ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer darei de ombros e não pensarei
mais no caso; mas que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e
sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu,
o deus da Vida; ela, o da Morte.
Hoje pela
manhã ela começou a me dizer qualquer coisa – "seu Rubem, o
cajueirinho..." – mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se
completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou
para ele a mudinha.
Veio me
mostrar:
– Eu
comprei um vaso...
– Ahn...
Depois de
um silêncio, eu disse:
–
Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...
Ela olhou
a plantinha e disse com convicção:
– Esse
aqui não vai morrer, não senhor.
Eu devia
lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela
espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem
onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do
vaso, e ficara aliviada com a minha indiferença. Antes de me sentar para
escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:
– Ainda
vou chupar muito caju desse cajueiro.
Ela riu
muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na
sala, disse baixo com certa gravidade:
– É capaz
mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...
Mas eu
acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de
hidrogênio e outros assuntos maiores.
(BRAGA,
Rubem, 1993-1990. 200 crônicas escolhidas – 31ª ed. – Rio de Janeiro: Record,
2010.)
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