12 Crônicas
A nuvem
− Fico admirado como é que você, morando nesta cidade, consegue escrever
toda semana sem reclamar, sem protestar, sem espinafrar ninguém!
Meu amigo está, como dizem as pessoas exageradas, grávido de razões. Mas
que posso fazer? Até que tenho reclamado muito isto e aquilo. Mas se eu ficar
rezingando todo dia, estou roubado: quem é que vai aguentar me ler?
Além disso, a verdade não está apenas nos buracos das ruas e outras
mazelas. Não é verdade que as amendoeiras neste inverno deram um show luxuoso
de folhas vermelhas voando no ar? E ficaria demasiado feio eu confessar que há
uma jovem gostando de mim? Ah, bem sei que esses encantamentos de moça por um
senhor maduro duram pouco. Eles se irão como vieram, leve nuvem solta na brisa,
que se tinge um instante de púrpura sobre as cinzas do meu crepúsculo.
E olhem só que tipo de frase estou escrevendo! Tome tenência, velho
Braga. Deixe a nuvem, olhe para o chão − e seus tradicionais buracos.
(Adaptado de: BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana! Rio de Janeiro:
Editora do Autor, 1960, p. 179/180)
Retrato falado
Uma das coisas que não entendo é retrato falado. Em filme policial
americano, no retrato falado sai sempre a cara do criminoso, até o último
cravo. Mas na vida real, que nada tem de filme americano, o retrato falado
nunca tem o menor parentesco com a cara do cara que acaba sendo preso.
- Atenção. Aqui está um retrato falado do homem que estamos procurando.
Foi feito de acordo com a descrição de dezessete testemunhas do crime. Decorem
bem a sua fisionomia. Está decorada?
- Sim, senhor.
- Então, procurem exatamente o contrário deste retrato. Não podem errar.
Imagino os problemas que não deve ter o artista encarregado dos retratos
falados na polícia. Um homem sensível obrigado a conviver com a imprecisão de
testemunhas e as rudezas da lei.
- O senhor mandou me chamar, delegado?
- Mandei, Lúcio. É sobre o seu trabalho. Os seus últimos retratos
falados...
- Eu sei, eu sei. É que estou numa fase de transição, entende? Deixei o
hiper-realismo e estou experimentando com uma volta as formas orgânicas e...
- Eu compreendo, Lúcio. Mas da última vez que usamos um retrato falado
seu, a turma prendeu um orelhão.
O pior deve ser as testemunhas que não sabem descrever o que viram.
- O nariz era assim, um pouco, mais ou menos como seu, inspetor.
- E as sobrancelhas? As sobrancelhas são importantes.
- Sobrancelhas? Não sei... como as suas, inspetor.
- E os olhos?
- Os olhos claros, como os...
- Já sei. Os meus. O queixo?
- Parecido com o seu.
- Inspetor, onde é que o senhor estava na noite do crime?
- Cala a boca e desenha, Lúcio.
E há os indecisos.
- Era chinês.
- Tem certeza?
- Ou era chinês ou tinha dormido mal.
E deve haver a testemunha literária!
- Nariz adunco, como de uma ave de rapina. A testa escondida pelos
cabelos em desalinho. Pelos seus olhos, vez que outra, passava uma sombra como
uma má lembrança. A boca de uma sensualidade agressiva mas ao mesmo tempo tímida,
algo reticente nos cantos, com uma certa arrogância no lábio superior que o
lábio inferior refutava e o queixo desmentia. Narinas vívidas, como as de um
velho cavalo. Mais não posso dizer porque só o vi por dois segundos.
Os sucintos:
- Era o Charles Bronson com o nariz da Maria Alcina.
- Tipo Austregésilo de Athayde, mas com bigodes mexicanos.
- Uma miniatura de cachorro boxer, comandante da Varig e beque do
Madureira.
- Bota aí: a testa do Jaguar, o nariz do Mitterrand, a boca do porteiro
do antigo Fred's e o queixo da Virgínia Woolf.
Uma orelha da Jaqueline Kennedy e a outra, estranhamente, do neto do
Getty.
- A Emilinha Borba de barba depois de um mal voo na ponte aérea com o
Nélson Ned.
E há as surpresas.
- Bom, era um cara comum. Sei lá. Nariz reto, boca do tamanho médio, sem
bigode. Ah, e um olho só, bem no meio da testa.
O ciclope ataca outra vez!
Experimente você dar as características para o retrato falado de alguém.
- Os olhos de Sandra Brea. Um pouco menos sobrancelha. O nariz de Claire
Bloom de 15 anos atrás. A boca de Cláudia Cardinale. O queixo da Elizabeth
Savala. Um seio de Laura Antonelli e outro da Sydne Rome. As pernas da Jane
Fonda.
- Feito. Mas quem é essa?
- Não sei, mas se encontrarem, tragam-na para mim depressa. E vival
(Luis Fernando Veríssimo. Retrato falado. In: PINTO, Manuel da Costa.
Crônica brasileira contemporânea. São Paulo: Salamandra, 2008.)
A solidão do taxista
Tive um tio taxista. Por incrível que pareça, de vez em quando, tio
Fausto me levava para trabalhar junto com ele.
Eram outros tempos. Eu tinha lá meus oito, nove anos e, quando o
passageiro se surpreendia com a presença da menininha no banco de trás do
carro, meu tio falava: “Se o senhor não se importa, vou levar minha sobrinha ao
dentista, mas posso quebrar o galho e fazer sua corrida".
Ninguém se importava, ele nunca me levou ao dentista e ganhamos muitas
histórias no fusquinha verde-água zanzando pelo Rio de Janeiro.
Eu escutava as conversas, as notícias do rádio, dormia, acordava, ganhava
balas dos passageiros e via a vida correndo pela janela. Era fã do meu tio e de
seu jeito de flanar pela vida. Ele achava tudo divertido, adorava um bom papo.
Meu tio me fez crer que uma das melhores profissões do mundo é taxista.
Virei atriz. Mas, se há coisa de que gosto, é andar de táxi.
Sento no banco de trás, abro a janela e, mesmo quando não rola conversa,
o simples fato de ficar sacolejando no trânsito olhando pela janela é para mim
algo de extremo prazer. É um descanso sem igual.
Acontece que comprei um iPhone e, pouco a pouco, fui pedindo licença a
meu amigo taxista para um telefonema aqui, um e-mail acolá e passei a
interromper meu precioso flanar nos táxis com coisas que acho que precisam ser
feitas naquela hora.
Em dias mais corridos, entro dizendo o destino entre uma fala e outra ao
telefone, pago a corrida com o troço no ombro e saio do carro com meu tio
balançando a cabeça lá em cima. Que desperdício!
Meu celular me abriu infinitas janelas, mas me roubou a mais preciosa de
todas. Nossos eletrônicos vão sorrateiramente nos roubando a plenitude, ou
seja, a simples sensação de estar em um lugar, sem achar que deveria estar em
outro.
Penso no meu tio e imagino o quanto se divertiria ouvindo os absurdos
que falamos ao celular ao ignorar o solitário taxista.
Eles devem ter muitas histórias para contar quando chegam para jantar.
Se as esposas não estiverem no Facebook...
(Denise Fraga. Folha de S.Paulo, 12.06.2012. Adaptado)
Plataforma
O Rio vive uma contradição no carnaval que parece não ter saída.
Não vai longe o tempo em que reclamava da decadência da folia nas ruas. O
carnaval tinha se transformado no desfile de escolas de samba, uma festa
elitista que se resumia ao que acontecia nos limites do Sambódromo e que era
vista por apenas 30 mil pessoas que pagavam caro para participar da
brincadeira. E que só durava duas noites. Para quem se diz o maior carnaval do
mundo, convenhamos que é muito pouco mesmo. Agora, quando os blocos voltaram a
animar as ruas da cidade durante toda a folia e ainda nas semanas que a
antecedem, o Rio continua reclamando. Tem bloco demais, tem gente demais, tem
pouco banheiro, tem muito banheiro... Carnaval é festa espontânea. Quanto mais
organizado, pior. Chico Buarque fala sobre isso no ótimo samba
"Plataforma". "Não põe corda no meu bloco/ Nem vem com teu
carro-chefe/ Não dá ordem ao pessoal", já dizia ele num disco de
antigamente. Bem, como antigamente as letras de Chico sempre queriam dizer
outra coisa, é capaz de ele não estar falando de organização do carnaval. Mas à
certa altura ele é explícito: "Por passistas à vontade que não dancem o
minueto". Para quem está chegando agora, pode parecer o samba do crioulo
doido. Mas o compositor faz uma referência ao desfile do Salgueiro de 1963,
quando "Xica da Silva" foi apresentada à avenida. A escola
"inovou" apresentando uma ala com 12 pares de nobres que dançavam o
minueto. Foi um escândalo. Não pode. Passista tem que desfilar livre, leve e
solto. Falando disso agora, quando passistas não têm a menor importância,
quando eles mal são vistos na avenida, percebese que o minueto era o de menos.
Mas isso é escola de samba, e o assunto aqui é carnaval de rua (faz tempo que
escola de samba não é carnaval de rua). Com o renascimento dos blocos, o Rio
recuperou a alegria do carnaval nas calçadas, no asfalto, na areia. E agora?
Basta dar uma olhada nas cartas dos leitores aqui do jornal. Reclama um leitor:
"Para os moradores de Ipanema, (o carnaval de rua 2011) transformou-se num
tormento. Ruas bloqueadas até para o trânsito de pedestres, desrespeito à Lei
do Silêncio, atos de atentado ao pudor e, por vezes, de vandalismo".
Escreve outro, sobre os mijões, figura que ficou tão popular no período quanto
a colombina e o pierrô: "A Guarda Municipal deveria agir com mais atenção
e no rigor da lei. Está muito sem ação." Mais um: "Com que direito a
prefeitura coloca esses banheiros horrorosos nas avenidas da orla, onde se paga
dos IPTUs mais caros do mundo, ocupando vagas de carros que já são tão
poucas?" Como se vê, e voltando a citar o samba do Chico, o carioca tem o
peito do contra e mete bronca quando o assunto é carnaval. Mas carnaval de rua
muito organizado... não sei, não. É como botar o pessoal que sai nos blocos
para dançar o minueto. Carnaval de rua e organização não combinam.
(Artur Xexéo. Revista O Globo, dezembro de 2011)
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