Miriam Leitão: Mestres encantados

Era com ph que se escrevia o efe no primeiro livro que li de Machado de Assis. A velha ortografia foi o ruído que desprezei pela força da história. Havia também os rastros das traças em pequenos buraquinhos entre as letras. Meu pai se orgulhava da coleção em capa dura que estava em destaque na sua estante fechada com vidro para afastar a poeira. Pena ter a ortografia caducado, mas isso não me impediu de amar Capitu e para sempre ficar prisioneira da dúvida. Vítima da desordem mental de Bentinho ou culpada pelo que escondia atrás dos seus olhos oblíquos? Eu jamais amei pessoa dissimulada, exceto Capitu.
Aos 11 anos, meu pai achou que era cedo demais para Machado. “Você não vai entender”, e me apontou a coleção novinha que chegara de José de Alencar. Voltei assim que pude para Machado. As releituras são como visitas a um velho amigo. Outro dia me inquietei com a
notícia de que foram feitas versões simplificadas dos seus textos oblíquos. Nada, nem a forma em desuso de se escrever as palavras, me impediu de entender “Dom Casmurro”.
Foi num exemplar emprestado pela minha irmã, que pegara emprestado com seu professor, que li, aos 16, pela primeira vez, “Grande Sertão: Veredas”. Li durante dias e, no fim, virei a noite. “O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira”. Devolvi por imposição do direito de propriedade que se sobrepunha, para a minha revolta, ao do amor. Quis expropriá-lo em nome do povo ou da paixão avassaladora que senti por Diadorim e Riobaldo. Eu os seguiria a cavalo até o fim do sertão. “Não estou caçando desculpas para meus errados, não, o senhor reflita. O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou por mim no meio da madrugada”. Por mais exemplares que eu tenha hoje do romance de Guimarães Rosa, ainda queria aquele que nunca foi meu.
“Vidas Secas” estava já gasto, num canto, quando eu o achei na casa dos meus pais. Ele colou em mim. “Você já não tinha lido este livro?”, me perguntou minha irmã, quando eu estava com quatorze. Sim, já. Era a terceira vez que chorava pelos meninos sem nome, pelo destino da Baleia. Eu pensava assim: “por que o pai, Fabiano, tem nome tão lindo e eu jamais saberei os nomes dos meninos?”
Eu peguei, com reverência, na casa de José Mindlin, a primeira cópia que foi da gráfica para a revisão do exigente Graciliano Ramos. Fiquei pensando o que o fizera errar. O mestre da palavra exata e enxuta cometera um único erro no livro. Que foi corrigido a tempo. Com riscos de próprio punho ele descartou o título aguado: “A vida coberta de penas”. Destoante. Por cima, escreveu: “Vidas secas”. Fico tentando adivinhar que graça ele viu naquele primeiro título que por um tempo breve foi o escolhido para a sua obra.
Às vezes, divago: “e se fosse possível encontrá-los?” Perguntaria a Machado pelo enigma de Capitu; a Guimarães Rosa se o destino de Diadorim e Riobaldo estava traçado desde o começo, e a Graciliano o que foi que deu nele no momento em que quase errou o título de Vidas secas. A verdade é que se os encontrasse na era dos selfies eu não pediria uma foto. Ficaria respeitosamente muda. Ou talvez murmurasse obrigada e fugiria para não quebrar o encanto da vida inteira.

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