Flores (baseado em fatos reais)


As flores que Rebeca carregava lentamente sobre seus antebraços lembravam-na da canção, sim daquela canção...

"Flores para quando tu chegares
Flores para quando tu chorares
Uma dinâmica botânica de cores
Para tu dispores, pela casa"

Após cantar mentalmente movimentando os lábios sem som, subitamente, enfim, as lágrimas acumuladas desde ontem começaram a cair, não rolaram pela sua face avermelhada, mas sim caíam duramente, camadas e camadas de lágrimas, uma explosão nuclear de lágrimas. De seu peito saía um vulcão de dores, sentimentos, lembranças. Foi obrigada a parar, ninguém percebeu, pois ela era a última no cortejo. Ninguém a amparou porque estava sozinha. Não havia família, não havia amigos, não havia mais ele. Bec, como ele a chamava, procurou uma árvore para se apoiar. Encostou-se nela com toda sua alma, sentindo a vibração da natureza a sua volta, cada célula do seu corpo sentia isso, mas sentia também a falta dele. 

Camilo era botânico, uma profissão muito nobre e rara. Sabia muito e demais sobre as flores e era o presente que ele mais ofertava a sua amadinha. Bec no começo dos encontros não gostava muito de receber flores, mas quando Camilo compartilhava seu conhecimento com ela, era impossível não se envolver, e passou a amar as flores tanto quanto ele.

Camilo e Rebeca se conheceram na biblioteca. Ele estava lá para uma pesquisa sobre plantas venenosas e ela estava para pesquisar sobre algumas cidades antigas. Mesmo em épocas em que é possível encontrar tudo na internet, tanto um quanto o outro ainda eram adeptos ao silêncio e conforto que somente uma biblioteca pode oferecer na hora de estudar.

Na fila das fotocópias, Camilo deixou o celular cair, pois estava com os braços lotados de livros, todo atrapalhado como sempre. Rebeca prontamente se abaixou e recolheu o telefone, entregando-o para Camilo.

"Obrigado, moça"
"Imagina"

Mais alguns minutos adiante e o um livro escorrega da pilha, cai no chão e faz aquele barulho. Camilo sente seu rosto esquentar de vergonha. Rebeca abaixa-se novamente, pega o livro, mas não entrega.

"Se você não se importar, seguro pra você, pode cair de novo"
"Obrigado, moça, acho que exagerei na quantidade... Sou uma mula mesmo"
"Não tem de que, a gente se empolga nas pesquisas e dá nisso."

Camila não se virou para frente, mas ficou na diagonal, observou o título do livro que segurava e em seguida passou os olhos sobre os títulos do livro que Camilo segurava.

"Livros sobre flores? Que romântico..."
Camilo soltou uma risadinha tímida, olhou para baixo:
"Ah! Não... Não tem nada a ver com romantismo, eu sou botânico e esses livros são uma pesquisa"
"Ah! Entendo... Nossa, nunca conheci um botânico, parece bem interessante"

Ao concluir a frase, Rebeca já estava colocando seus livros sobre o balcão de fotocópias e fez final para Camilo colocar os livros dele sobre o balcão também. 

Nos minutos que se seguiram houve apenas orientação para as cópias e instalou-se um silêncio entre eles. O serviço que Rebeca precisava era pouco e acabou antes de Camilo. Ao pegar as folhas dela, afastou-se um pouco:

"Desculpa, não perguntei seu nome, mas quero saber se você precisa de ajudar para devolver os livros na seção."
"Camilo. Sim, sim, gostaria. E você se chama?"
"Rebeca"
"Ok, Rebeca, obrigado."

Rebeca aguardou silenciosamente um pouco afastada da fila. Camilo fez sinal para ela se aproximar e juntos levaram os livros para serem devolvidos. No trajeto que se seguiu conversaram amenidades. Após os livros entregues, Camilo perguntou se ela poderia tomar um café com ele.

E depois disso engataram um relacionamento secreto. 

Secreto porque Camilo havia se divorciado recentemente e Bec pertencia a uma família que não aceitava ela se relacionar com um homem divorciado. Camilo não queria envolvê-la numa situação  constrangedora entre ela, a ex esposa e a família dele, que não aceitava o divórcio, então resolveram que iriam se encontrar em segredo e viver seu romance. 

Mas as coisas não andavam muito legal, pois chegou um momento em que aquela situação havia se tornado um tanto quanto chata. Aos finais de semana nunca podiam sair juntos, pois ele devia ficar com o filho. Nem sempre podiam se falar porque ele estava na casa dos pais e não queria que eles soubessem do relacionamento e por outro lado Rebeca não queria ninguém a perturbando com peguntas sobre com quem ela falava tanto ao telefone. E além de tudo isso, havia a pós-graduação dele e dela, que durava o sábado todo e metade do domingo de ambos.

Então, quando a relação deles completou um ano, Rebeca decidiu por um fim. Afinal de contas, que tipo de relacionamento era aquele? Nenhum dos dois conhecia nem a família e nem os amigos um do outro. Se viam raramente e rapidamente durante a semana. Não havia mais como prosseguir. Rebeca marcou um café e terminou tudo.

Camilo não aceitou e disse que iria lutar por ela. Ele realmente ficou arrasado. Rebeca também ficou, mas ela precisava prosseguir e encontrar alguém que realmente fizesse parte da sua vida. Ela o agradeceu pelo tempo juntos, por tudo o que ele havia ensinado a ela, pois ele era cinco anos mais velho e tinha mais experiência. 

Quando Rebeca se afastou dele, sentia que havia feito o certo. Cinco dias depois Camilo sofreu um acidente de carro, ficou sete dias em coma e faleceu. Rebeca só ficou sabendo disso porque um amigo do trabalho do Camilo ligou para ela avisando. Mas ligou após a morte, não soube que ele havia ficado em coma. 

Rebeca ficou transtornada, porque ela teve muita vontade de atender às ligações dele. Camilo ligava várias vezes ao dia. Mandava mensagem, queria saber como ela estava, porém ela havia decidido que ficaria alguns dias sem falar com ele. Ela ficou furiosa por não ter sido avisada antes, que falta de consideração do tal amigo. No entanto, ela soube mais tarde que o tal amigo queria ter ligado antes, mas não achava o número. 

Agora, já não havia mais o que fazer, não havia com quem falar sobre o assunto, não havia para quem correr. O amor deles havia ficado somente entre eles. Precisou suportar toda aquela dor, aquelas dúvidas e confusão sozinha.

Durante o velório, sentou-se bem afastada de todos, o local era bem diferente daquelas capelas mortuárias horrorosas. Parecia um teatro pequeno, com poltronas e luzes bem fracas. Ali, ela pode observar a família, a ex esposa, o filho, os amigos. Pôde observar todas as pessoas que ele havia a privado de conhecer, simplesmente por ter sido covarde e ela passiva. Em um determinado momento, quando percebeu que havia poucas pessoas no lugar, a família havia se ausentado para descansar, ela pôde se aproximar do corpo.

Diante daquele corpo sem vida, ela se lembrou de alguns momentos maravilhosos  entre eles. Mas segurou as lágrimas, para não chamar a atenção de ninguém. Não foi difícil segurar as lágrimas, ele ainda estava ali. Tocou suavemente nas mãos dele, olhou demoradamente para seu lindo e delicado rosto. Camilo não era um cara muito grande, mas era alto, magro e muito bonito. Chamava a atenção mais pela educação e polidez com que tratava as pessoas, pois isso trazia um charme inebriante, do que pela beleza. Bec se afastou lentamente, mas sem se despedir, afinal, ninguém se despede duas vezes. Ela já havia feito isso cinco dias atrás. 

Quando Bec retomou um pouco de fôlego o cortejo já havia chegado à cova, de longe ela pode observar todas as pessoas em volta daquele buraco que iria abrigar o amor da vida dela para sempre. Não encontrou forças para se aproximar. Decidiu que iria aguardar todos irem embora para então se aproximar. Chegou ao local recém cimentado, ficou vários minutos olhando para aquele túmulo. Abaixou-se, colocou as flores sobre o túmulo, virou-se e foi embora.


Flores
Zélia Duncan

Flores para quando tu chegares
Flores para quando tu chorares
Uma dinâmica botânica de cores
Para tu dispores, pela casa

Flores para quando tu chegares
Flores para quando tu chorares
Uma dinâmica botânica de cores
Para tu dispores, pela casa

Pelos cômodos, na cômoda do quarto
Uma banheira repleta de flores
Pela estrada, pela rua, na calçada
Flores no jardim
Pétalas ao vento, para tu contares
Para além dos nomes, que possam dizê-las
Flores pra compores metáforas
Antes de comê-las

Para quando tu chegares
Flores para quando tu chorares
Uma dinâmica botânica de cores
Para tu dispores, pela casa

Pelos cômodos, na cômoda do quarto
Uma banheira repleta de flores
Pela estrada, pela rua, na calçada
Flores para mim
Flores pros meus braços
Ofertá-las para parabenizar-te
Flores quantas flores, forem necessárias
Pra perguntares pra que tantas flores

Para quando tu chegares
Flores para quando tu chorares
Uma dinâmica botânica de cores
Para tu dispores, pela casa

Pelos cômodos, na cômoda do quarto
Uma banheira repleta de flores
Pela estrada, pela rua, na calçada
Flores para mim
Flores pros meus braços
Ofertá-las para parabenizar-te
Flores quantas flores, forem necessárias
Pra perguntares pra que tantas flores



Este conto nasceu a partir do desafio de usar 10 palavras aleatórias no texto.

canção acumular nuclear antebraço botânico camadas células coma mula vulcão

Baseado em fatos reais.

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